Acelerando pela primeira vez um carro da Ferrari, Lewis Hamilton fez sua estréia oficial em Fiorano como novo piloto da escuderia italiana.
Estamos a pouco maisde um mês e meio para a estréia da temporada deste ano da Fórmula 1, e apergunta que não quer calar do momento é: como Lewis Hamilton irá se mostrar emsua nova fase da carreira, defendendo a mais icônica de todas as escuderias dogrid, a Ferrari? Uma questão que, há praticamente um ano atrás, todos estiveramesperando pacientemente para saber a resposta, deixando de lado até mesmo asexpectativas que tinham para a temporada da categoria máxima do automobilismodo ano passado, que perdia parte de seu impacto, com o pessoal querendo sabermesmo é do que iria acontecer agora em 2025.
E não é por acaso.Afinal, Lewis Hamilton, heptacampeão mundial, e recordista absoluto de pole-positionse vitórias na F-1, irá defender o time de Maranello, e com o objetivo deconquistar um oitavo título, e se tornar o recordista de campeonatos da competição,empatado que está com o alemão Michael Schumacher, que também conquistou setetítulos, sendo que cinco deles foram com os carros vermelhos. Impossível não sefazer comparações entre ambos os pilotos.
E esta semana LewisHamilton chegou a Maranello, agora oficialmente como piloto da Ferrari, paracomeçar seu entrosamento com a escuderia, e começar a planejarem seus primeirospassos, com o inglês a conhecer a fábrica, os mecânicos, os simuladores dotime, e tudo o mais. É um aprendizado muito necessário, depois de passar maisde uma década defendendo a Mercedes, onde já conhecia a tudo e a todos. Agora,ele tem de se familiarizar com sua nova escuderia, e se enturmar o quantoantes, e principalmente, conseguir cativar aqueles com quem irá trabalhar, deforma a estabelecer um ambiente o mais harmonioso possível. O ponto alto foi aprimeira experiência do heptacampeão mundial com o carro do time italiano,conseguindo dar cerca de 30 voltas com o modelo SF-23, de dois anos atrás, napista de Fiorano, que pertence à escuderia italiana. E com direito a muitos fãsque enfrentaram o frio e o mau tempo para acompanharem a estréia “oficial” deHamilton nos carros vermelhos, sendo que foi a primeira vez que ele acelerou umcarro oficialmente não utilizando um motor Mercedes, presente em sua carreirana F-1 desde que estreou na McLaren em 2007. Não foram divulgados tempos econdições de acerto do carro, uma vez que se tratou muito mais de umaaclimatação do que um teste para comprovar performance, até por ser um carro deduas temporadas atrás, usando pneus de demonstração da Pirelli para tal. Mas Lewistratou de marcar presença, indo inclusive cumprimentar parte dos fãs que láestavam para acompanhar sua estréia com a “rossa”, mostrando seu carisma erespeito pelos torcedores, entendendo a mítica que cerca a escuderia italiana.
Afinal o momento é degrande simbolismo, pois é a chegada de um multicampeão em Maranello, e comotal, cheia de expectativas para atender aos desejos de uma escuderia que foi campeãde pilotos pela última vez em 2007, e de construtores pela última vez em 2008.E a torcida, como não poderia deixar de ser, está ávida por ver esse jejumterminar. E a contratação de Lewis Hamilton é justamente parte do objetivo determinar esse período de falta de conquistas, depois da escuderia bater natrave em alguns tempos recentes.
Mas, a expectativa desucesso irá se confirmar? A Ferrari, apesar de sua fama lendária, sendo a únicaescuderia do grid presente desde os primórdios da competição até os diasatuais, pode ser tanto um paraíso quanto um inferno. Um sonho, que pode virarum pesadelo. Defender o legado de Maranello não é tarefa fácil, e embora aescuderia possa dispôr de todas as condições necessárias para ser campeã, nemsempre conseguiu conjugar todos estes fatores com a competência necessária paratanto. Muito pelo contrário: a relação de pilotos que chegaram a Maranello como objetivo de fazer nome junto à escuderia, e fracassaram, ou não conquistaramo que esperavam, ou que se esperava deles, é bem ampla. E não estamos falandode pilotos comuns na competição apenas, mas também de grandes gênios dahistória da velocidade, que em seus melhores momentos assombraram o mundo dacompetição pelos feitos que obtiveram.
Desses nomes, apenasum se destaca por ter alcançado com êxito seu objetivo: Michael Schumacher. Opiloto alemão, bicampeão com a equipe Benetton nas temporadas de 1994 e 1995,poderia ter facilmente permanecido onde estava, e continuado a ganhar maistítulos, mas surpreendeu a todos quando, no fim de 1995, anunciou que estava semudando para o time italiano, com vistas a levar a Ferrari de volta ao topo docampeonato. Foi uma contratação tão ou até mais surpreendente do que a deHamilton, pois Schumacher trocou o certo pelo duvidoso, à época, até porque aFerrari andava com um viés de baixa estima na F-1.
Não foi algo fácil.Demorou pelo menos três temporadas para as coisas se encaixarem direito emMaranello, fruto de uma reestruturação da escuderia nas mãos de Jean Todt, quecomeçou ainda em 1993, começou a dar alguns frutos em 1994, mas só se completoumesmo em 1998, quando todas as peças já estavam em seus devidos lugares,prontas para desempenharem os papéis para as quais haviam sido escolhidas. Erapara o triunfo ter vindo já em 1999, mas o acidente de Schumacher emSilverstone, onde o alemão quebrou a perna, adiou os planos, e ainda assimporque a Ferrari demorou a apoiar Eddie Irvinne como deveria, acostumada à suapolítica de um piloto, dois carros, onde o alemão era a prioridade 1, 2, e 3 daescuderia, sobrando ao irlandês as sobras. E mesmo assim, Irvinne quase chegoulá. Restou de consolo o título de construtores, mas era pouco diante dasambições da escuderia italiana.
Mas, entre 2000 e2004, todos os esforços resultaram em nada menos do que cinco títulos depilotos e construtores para o time de Maranello, que não só saía da fila deespera de mais de vinte anos sem um título de pilotos, como impunha um massacreem todos os concorrentes à época, que se viram incapazes de se contrapor àdinastia ferrarista. Mas, em 2006, essa parceria se encerrou, com Michael dandopor finalizada sua missão em Maranello, após uma década defendendo o timeitaliano. Contratado para substituir Schumacher no time rosso, o finlandês atécomeçou bem, levando o título de 2007, mantendo a Ferrari no topo da hierarquiada F-1 após dois anos sendo superada pela Renault e Fernando Alonso. FelipeMassa quase chegou lá em 2008, mas ficou no quase, apesar da excelentetemporada do piloto brasileiro. Mas 2007 marcou a despedida da Ferrari do topodo campeonato de pilotos, e desde então, o jejum veio se prolongando.
Mas, ao contrário deMichael Schumacher, a imensa maioria de campeões que chegaram como salvadoresdo time italiano não obtiveram o sucesso esperado, e vamos lembrar algunsdestes nomes mais conhecidos que chegaram com tudo, e saíram com nada à rossa…Alain Prost chegou a Maranello em fins de 1989 como tricampeão mundial, e opiloto certo para reconduzir a Ferrari ao título que conquistara pela últimavez em 1979 com Jody Schekter. E a temporada de 1990 mostrou uma batalharenhida do francês contra o brasileiro Ayrton Senna, seu ex-colega na equipeMcLaren. Senna ganhou a parada, dando o troco em Prost na etapa do Japão, peloque o francês havia feito com ele em 1989 no mesmo circuito. Polêmicas à parte,Prost encerrou o ano em alta, tendo levado a Ferrari de volta à briga pelotítulo, e prometendo, claro, repetir a dose em 1991. O time de Maranello tinhaum carro competitivo, um motor potente, e o talento do “Professor”, além dagestão competente de Cesare Fiorio à frente da escuderia italiana, que tinhaposto ordem na bagunça que o time vivia nos últimos anos. Era hora de retomar oseu posto de campeã com todos os méritos. Se quase veio em 1990, porque não em1991? A autoestima dos italianos estava em alta, e os esforços foram positivos.Mas faltou combinar com os adversários, em especial a McLaren e a Williams, queapresentaram carros muito melhores, enquanto o modelo 641 revelou-se inferiorao MP4/6 e ao FW14, respectivamente, sendo necessário até o lançamento de umaversão revisada, o 641/B, que apesar de apresentar performance melhor, aindaassim não permitiu a Prost desafiar seu desafeto ex-colega de McLaren, muitomenos um renascido Nigel Mansell numa Williams que voltava ao topo da F-1. Aofim do ano, após uma performance medíocre na etapa do Japão, Prost chamou seucarro de “caminhão”, e foi demitido sumariamente pela Ferrari, pela ousadia decomparar seu bólido daquela maneira, encerrando seu breve período em Maranellosaindo pela porta dos fundos. Que tricampeão mundial sofreria tamanhahumilhação apenas por dizer a verdade daquela maneira?
Em situação similar,foi o q ue aconteceu também com FernandoAlonso. O espanhol, bicampeão do mundo, foi contratado pelos italianos para olugar de Kimi Raikkonen, que apesar de ter sido campeão em seu primeiro ano naescuderia, em 2007, não mostrava a verve que os ferraristas tanto necessitavampara voltarem a ser campeões, algo que também não enxergavam muito em FelipeMassa, apesar da excelente temporada do brasileiro em 2008. O asturiano mostroudo que era capaz, e quase chegou ao título em 2010, logo em seu primeiro ano notime de Maranello, perdendo a taça por um erro estratégico na etapa final, emAbu Dhabi, que permitiu que Sebastian Vettel, da Red Bull, se sagrasse campeão.O piloto alemão iniciaria uma dinastia com a Red Bull, sendo campeãoininterruptamente até 2013, apesar dos esforços de Alonso, que quase chegou láem 2012, e não conseguiu parar Vettel em 2013. O gênio difícil de Alonso tambémcomeçou a incomodar a Ferrari, que numa troca de comando, resolveu colocarFernando em seu devido lugar, e depois de uma temporada complicada em 2014,dispensou o espanhol sem a menor cerimônia, tendo garantido a contratação deVettel para o time. Tal como Prost, Alonso foi uma esperança que chegou comtudo em Maranello, mas saiu pelos fundos da escuderia italiana, apesar de todosos esforços que dispendeu por lá.
E Sebastian Vettel,tido como redentor, mais uma vez, pelo time e pela ansiosa torcida italiana,seria quem redimiria a Ferrari? Não há como negar que o alemão começou até bem,mas tal como Alonso, ele também acabou atropelado por outra equipe hegemônica,agora no caso, a Mercedes, que dominou a tudo e a todos entre 2014 e 2020,fazendo Vettel sentir o que ele próprio infligiu aos rivais entre 2010 e 2013.E Vettel, quem diria, apesar de ter cativado a torcida e o time logo de cara,com o tempo acabou sendo mais um piloto que, de redentor, acabou saindo pelaporta dos fundos de Maranello, sendo literalmente dispensado depois de ser eclipsadopor Charles LeClerc, prata da casa, que enfiou o tetracampeão no bolso logo emsua primeira temporada no time vermelho, em 2019, depois de também falhar na missãode levar a Ferrari ao título.
Fernando Alonso foi vice-campeão duas vezes pela Ferrari, o que não bastou para satisfazer a torcida italiana e o time, que o dispensou sem maiores cerimônias, diante do gênio difícil do espanhol.
E o que acontecequando, mesmo com o triunfo, o piloto ainda é crucificado? Niki Lauda quasemorreu no seu acidente em Nurburgring em 1976, mas ainda conseguiu voltar àcompetição e à disputa do título, mas na prova final, em Fuji, no Japão, oaustríaco desistiu da corrida devido à forte chuva que caiu, deixando que JamesHunt conquistasse o título com a McLaren. A Ferrari e a torcida italiana nãoperdoaram o piloto, nem mesmo quando Lauda conquistou o título de 1977, tachando-ode “covarde”, para dizer o mínimo, não respeitando as condições do piloto àépoca, lembrando que Lauda precisou vencer a morte e ainda voltar a correr. Oaustríaco mandou o time italiano às favas depois de chegar ao bicampeonato, efoi-se embora da escuderia, que ali cometeu um grande ato de ingratidão paracom o piloto, mas que nunca se arrependeu do que fez, nem a fanática torcidaitaliana, que anos depois ainda teria de engolir o tricampeonato de Lauda com amesma McLaren que o havia vencido em 1976.
Qual será a sina deHamilton em Maranello? A consagração, ou a frustração? Difícil saber, antesmesmo dos primeiros testes da pré-temporada. E, em se tratando de Ferrari,dificilmente haverá um meio-termo, pelo modo como a escuderia sempre se comportou,e sua fanática torcida, os tiffosi. Talvez a única exceção tenha sido GillesVilleneuve, que é venerado até hoje na Itália, apesar de nunca ter sidocampeão, mas que demonstrava imensa bravura ao volante de seu carro, e por issomesmo, tendo seu espírito combativo cativado os torcedores, mesmo tendo obtidopoucas vitórias com o carro vermelho, e não ter sido campeão por lá.
Outro ponto importanteé como se dará a relação entre a dupla de pilotos titular da Ferrari. Orelacionamento entre Charles LeClerc e Carlos Sainz Jr. foi pacífico, apesar dealgumas disputas mais acirradas entre ambos. Mas, e como será do monegasco comHamilton? Veremos uma convivência respeitosa, ou o início de um confrontofraticida dentro da escuderia italiana?
Charles LeClerc é umpiloto extremamente rápido, talvez o melhor do grid atual em volta lançada, umponto onde o próprio Hamilton confessou em 2024 talvez não ter mais a mesmavelocidade, em que pese a declaração de Toto Wolf de que o heptacampeão nuncase achou totalmente adaptado aos novos carros de efeito-solo em voltas rápidas.Mas, até sabermos como será o comportamento do novo carro de 2025 da Ferrari,não dá para especularmos como Lewis irá se dar neste quesito em sua novaescuderia. Mas pole-position, com raras exceções, não ganha corrida, e éjustamente no ritmo de prova que o inglês ainda se mantém muito forte. Se elemantiver a toada, pode muito bem inverter completamente a situação nascorridas, se o carro for competitivo. A capacidade de conservar o equipamento,em especial os pneus, e manter a performance, pode ser um grande diferencialentre os pilotos, em especial se o carro apresentar um comportamento quenecessite de uma condução suave e constante, sem comprometer sua fiabilidade.Neste ponto, Carlos Sainz Jr. demonstrou em vários momentos ser capaz deconservar melhor o equipamento que LeClerc. Ele conseguirá inverter essaperspectiva em relação a Lewis Hamilton?
Sebastian Vettel tentou repetir a façanha de seu compatriota Schumacher no time italiano, mas se perdeu no meio do caminho, também saindo por baixo da Ferrari.
E o quesito pressão?LeClerc já cometeu erros em várias ocasiões, enquanto se comportou bem em outras,mas é sempre lembrado de quando se desgarrou da pista, entregando de bandejaresultados aos rivais. Com a pressão de Hamilton no outro lado do box, omonegasco precisará se policiar para não errar, e eventualmente comprometer suaposição. Ele precisará manter a cabeça fria, e a velocidade, que foi justamenteo que fez desandar a posição de Sebastian Vettel no time, causada justamentepela concorrência do próprio LeClerc. E como Hamilton irá lidar com isso? Emalguns momentos, nos últimos três anos, o inglês saiu incomodado com algumasdisputas mais ríspidas que teve dentro da pista com George Russell, seu novocompanheiro na Mercedes, que não abriu passagem para ele. E devemos lembrar queambos vão querer marcar território no time, com LeClerc não querendo perder oespaço que já conquistou, e Hamilton tendo de conquistar o seu espaço, e precisandode resultados para isso.
E, diante desseobjetivo comum a ambos, temos também o clima interno na escuderia. Até opresente momento, ambos parecem estar se dando muito bem, mas e como issoficará na pista, ainda mais se os dois estiverem disputando a mesma posição emcorrida? LeClerc certamente não vai querer ser superado por Hamilton, e este,por sua vez, quer chegar determinado a ser campeão. O time irá precisaradministrar cuidadosamente esta rivalidade, que pode tanto impulsionar o timequando o prejudicar. Ambos podem tanto se ajudar, e com isso contribuir paratornar a Ferrari mais forte, como dividir os esforços, e poderem ser exploradospelos rivais na pista, que certamente tentarão tirar proveito dessa divisão deforças.
Temos outro detalhe aconsiderar: Hamilton chega já consagrado à Ferrari, com sete títulos no bolso euma estatística absurda de poles e vitórias conquistadas ao longo de mais de 16anos de competições, e para muitos, já em fase final de carreira, e paraalguns, exageradamente, já um ex-piloto em atividade que não sabe a hora deparar, e que deveria dar o lugar a um piloto mais promissor. Aos 40 anoscompletados recentemente, de fato é difícil imaginar Lewis competindo ainda pormuitos anos, mas na F-1, muita coisa depende do carro, e se ele forcompetitivo, um piloto de grande calibre ainda pode mostrar do que é capaz.Vimos isso em 2023, quando Fernando Alonso, agora com 43 anos, foi um dosdestaques do campeonato quando a Aston Martin chegou a ter o segundo melhorcarro do grid, com o espanhol abocanhando vários pódios e só não voltando avencer corridas diante da hegemonia da dupla Red Bull/Verstappen.
Consagrado, Hamiltonse permitiu dar vazão ao sonho de defender o time mais famoso da história daF-1, um sonho que o próprio Ayrton Senna acalentava, mas que ele mesmo desejavafazer, no mínimo depois de conquistar o pentacampeonato da categoria, caso seusplanos na Williams tivessem tomado outro rumo. Realizando seu sonho, Lewisconsagra sua carreira no automobilismo, até certo ponto independente do queconseguir realizar em Maranello. Mas obviamente ele não irá querer sair porbaixo. Ninguém quer, de fato. Resta saber se as circunstâncias ou a realidadeirão colaborar para seus objetivos, ou se ele será apenas mais um grandecampeão que não conseguiu dar à Ferrari o que ela e seus torcedores querem, oumereceram.